Mortes no Mediterrâneo não são uma fatalidade

22 de Abril, 2015

Será útil começar por esclarecer que a maioria das pessoas que embarcam em botes sobrelotados para uma travessia quase sempre mortífera rumo à União Europeia não são imigrantes. "Não estão a vir por questões económicas, mas sim a fugir dos seus países", explica Rui Tavares, reformado do Parlamento Europeu (PE) desde Maio, que dedicou grande parte do seu tempo como eurodeputado às questões de políticas migratórias, asilo e reintegração de refugiados. "Nós não nos referimos a estas pessoas como migrantes ou clandestinos, são refugiados, sobretudo os que vêm da Eritreia, Etiópia, Líbia e de outros países onde as situações são graves. Pelo menos esses são refugiados e sabemos que são a maioria dos que se metem nestes barcos."  
 
Em mais uma semana trágica para milhares de pessoas, abandonadas à morte no Mediterrâneo, no mar Egeu e noutras entradas marítimas na Europa, Tavares e CARLOS COELHO - eurodeputado pelo PSD que anteontem exigiu respostas à Comissão e ao Conselho Europeu - lembram o que muitos parecem ter esquecido. Nas palavras do ex-bloquista, actual líder do Livre/Tempo de Avançar, "não se trata de dinheiro que não existe". "A lei existe e os fundos existem, o que não existe é vontade política."  
 
Tavares e Coelho podem não partilhar da mesma ideologia, mas as palavras de um ecoam nas do outro no que toca ao assunto quente da semana, que entrou de rompante nas agendas mediáticas em Outubro de 2013, quando 500 migrantes morreram ao largo da ilha de Lampedusa. O silêncio quase total veio substituir o burburinho dessa altura até ao domingo passado, quando um barco com cerca de 900 pessoas a bordo naufragou no Mediterrâneo sem que as autoridades marítimas tivessem "meios suficientes" para as resgatar, nas palavras da Organização Internacional para as Migrações (OIM), que tem sido a primeira a fazer soar os alarmes de cada vez que um pedido de socorro é emitido. Todas continuam desaparecidas, provavelmente mortas. Segundo António Guterres, alto comissário da ONU para os Refugiados, pelo menos 1500 pessoas já morreram no Mediterrâneo só nas últimas duas semanas, contra os 3400 mortos registados em todo o ano de 2014.  
 
OBSTÁCULOS Quase dois anos passaram entre Lampedusa e a tragédia dos últimos dias e, durante esse período, tanto o actual eurodeputado do Partido Popular Europeu (PPE) como o ex-eurodeputado Tavares dedicaram parte do seu tempo a esta questão nas galerias de Bruxelas e de Estrasburgo. Há cerca de um ano, depois de os representantes da Frontex terem declarado que não são a Cruz Vermelha pára justificarem o incumprimento das "obrigatórias" missões de resgate, o social-democrata foi relator do regulamento 656/2014 - que, após entraves do Conselho, angariou um frágil consenso e passou a definir que a prioridade da agência de controlo das fronteiras externas europeias é salvar vidas. Isto continua a ser largamente ignorado pela Frontex, garantiu ao i.  
 
Mais ou menos por essa altura, pouco antes de anunciar que não se recandidataria nas eleições europeias de Maio, Rui Tavares foi relator numa comissão sobre políticas europeias de asilo e refugiados. "Quando apresentámos o Fundo Europeu para os Refugiados, que depois de eu sair do Parlamento Europeu foi integrado no Fundo de Asilo é Imigração, os relatórios foram aprovados por quase todos os grupos políticos, dos comunistas aos conservadores. A ideia de que é difícil congregar esforços é só meiaverdade", explica. "Tanto o Parlamento como a Comissão acharam adequado usar o artigo 80.° do Tratado da União Europeia como base da legislação, mas isto foi bloqueado no Conselho. Tivemos de abandonar essa pretensão, quando usar este artigo poderia minimizar muitíssimo, se não resolver o problema."  
 
ARTIGO 80.° Integrado num dos dois tratados-base da União Europeia como a conhecemos, o artigo 80.° foi um dos calcanhares de Aquiles - no caso de Tavares - dentro do PE. Lembra os obstáculos de "um grupo de eurodeputados dos países do centro, como o Reino Unido, Alemanha e França" quanto à aplicação dessa alínea como "uma das fases mais deprimentes do meu trabalho". No caso de França, explica, "eles temiam que, ao aceitarem o recurso ao artigo 80.°, Marine Le Pen ganhasse as presidenciais. Portanto, quando falamos da inacção da UE, temos de ver de quem é a inacção".  
 
O que o artigo 80.° permite é que sejam adoptadas políticas, no caso migratórias, com base no princípio da solidariedade. "E aqui fala-se de solidariedade para com estas pessoas que estão a morrer e para com os estados da UE que são pontos de chegada", caso de Malta, Itália e Grécia, que há muito pedem ajuda para lidar com os magotes de pessoas em desespero que todos os dias desembarcam nas suas costas e que são a reduzida minoria que as alcança com vida. "Se o artigo fosse aplicado, enquadraria legalmente as políticas comunitárias, o que possibilitaria o recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em caso de incumprimento das directivas pelas instituições ou pelos Estados-membros."  
 
A mesma ideia é repetida por Coelho no que toca à obrigação que a Frontex continua a ignorar "Porque é que o regulamento ainda não está plenamente em vigor? E porque é que se dá preferência a medidas comunitárias menores que as de países profundamente afectados? Tem de haver uma lógica de solidariedade. O que não pode acontecer de novo é o que está a acontecer agora", diz ao i.  
 
CUSTOS-BENEFÍCIOS Se entre 2007 e 2013 foram alocados quase 4 mil milhões de euros para gerir as fronteiras externas da UE e implementar políticas comuns de imigração e asilo, em 2014 foi criado o Fundo Europeu de Asilo, Migração e Integração (AMIF), com um investimento total de 3,1 mil milhões de euros até 2020 no mesmo sentido. No relatório do qual Tavares foi relator é estipulado que cada Estado-membro recebe quatro mil euros "por pessoa reinstalada" que se integre numa das categorias de "pessoas em risco", sejam mulheres e crianças vítimas de violência sexual, sobreviventes de violência nos países de origem ou pessoas com necessidade de protecção legal e/ou médica. "O objectivo era reinstalar 20 mil refugiados por ano até 2017, que é um quarto das pessoas que os Estados Unidos realojam por ano, cerca de 83 mil", exemplifica. "E mesmo assim teria sido suficiente para realojar os milhares de pessoas que morreram nos últimos anos a tentar chegar à Europa" Neste momento, a União Europeia integra cerca de 5 mil refugiados por ano. "As mortes no Mediterrâneo não são uma fatalidade com a qual temos de conviver, é uma questão nossa e a culpa é de todos. Existe dinheiro suficiente e é possível reinstalar cada pessoa em três meses, o que falta é vontade política." Vontade de todos, incluindo de Portugal. "Espero que este governo olhe para o que se está a passar com atenção e que esteja à altura do que queremos que o país seja, um país humanitário", diz Tavares. Neste momento, Portugal acolhe, em média 30 refugiados por ano, "muito pouco". E ajuntar a isto existem queixas submetidas por ONG como a Amnistia Internacional, que no início deste ano apontou o dedo a Lisboa num relatório demolidor pela falta de condições de asilo, diminuição dos apoios e dificuldades de acesso à Segurança Social que estas pessoas encontram no nosso país.  
 
São precisas soluções, dizem os políticos portugueses, mas sobretudo começar por aplicar as que já existem - como o regulamento que Coelho fez aprovar ou até o financiamento das missões de resgate dos Estados-membros. O socialdemocrata exemplifica com a operação italiana Maré Nostrum, que ajudou a salvar pelo menos 150 mil pessoas enquanto durou - até Outubro, quando a UE decidiu suspender o seu financiamento para criar uma missão comunitária que baptizou de Triton e para a qual alocou menos meios financeiros e humanos. "Durante a Maré Nostrum", diz Tavares, "havia notícias sobre pessoas resgatadas com vida. Agora é ao contrário."


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