Tráfico de crianças em Moçambique ? Carlos Coelho em entrevista ao jornal ''O Crime''

11 de Abril, 2004

CRIME:- As denúncias de tráfico de órgãos e de crianças em Nampula ocorrem há já alguns meses suspeitando-se, inclusive, que o assassínio de uma freira brasileira naquela região moçambicana possa estar relacionado com as redes internacionais de tráfico de órgãos a operar naquele país. Não lhe parece, até pela estreita ligação entre Moçambique e Portugal, que a defesa por parte dos deputados portugueses no Parlamento Europeu da intervenção da comunidade internacional na investigação deste caso peca por tardia?

CARLOS COELHO: É sempre tarde quando intervimos na denúncia de crimes cometidos e de violações dos Direitos do Homem. É sempre melhor quando se tomam medidas para prevenir essas situações. Isso significa investir no desenvolvimento de Moçambique. Sabemos bem que esse tipo de criminalidade anda paredes meias com a pobreza e o subdesenvolvimento.

Mas a projecção pública de uma e outra é bem diferente. A opinião pública não dedica atenção às políticas de cooperação de estímulo ao desenvolvimento e á consolidação da democracia em Moçambique. Mas alarma-se, compreensivelmente, na denúncia de situações criminosas que agridem a nossa sensibilidade.

CRIME:- - Que dados tem ao seu dispor que o levaram, em conjunto com outros deputados europeus, a solicitar a intervenção da comunidade internacional na investigação de alegados casos de tráfico de orgãos, tanto em Moçambique, como na Albânia ?

CARLOS COELHO: Têm vindo a público dados e denúncias várias e no passado dia 19 de Março, na Conferência da Organização de Cooperação dos Chefes de Polícia da Comunidade Regional da África Austral, foi acordada uma colaboração na investigação do tráfico de crianças e no tráfico de órgãos humanos, na sequência dos casos denunciados em Moçambique.

Os Relatórios da Europol e das Nações Unidas são claros: O tráfico internacional de seres humanos cresce de dia para dia. Segundo as Nações Unidas ele constitui hoje o terceiro tipo de actividade criminosa (a seguir ao tráfico de droga e ao tráfico de armas) que gera mais lucros no submundo avaliando-se em cerca de 7 biliões de dólares por ano. Por seu lado, a Organização internacional para as Migrações estima que o tráfico de seres humanos afecta anualmente entre 700.000 e 2 milhões de mulheres e crianças.

O tráfico de seres humanos desenvolve-se em 3 áreas diferentes e abrange indiscriminadamente homens, mulheres e crianças:

_ Tráfico de seres humanos para exploração de mão de obra ilegal curto-circuitando os fluxos de imigração e nalguns casos chegando mesmo a alimentar bolsas de escravidão.

_ Tráfico de seres hmanos para exploração sexual quer em casas de prostituição, quer para efeitos de produção de material pornográfico (revistas, filmes, etc.) ou para redes de internet onde a atenção mais recente se centrou na pedo-pornografia.

_ Tráfico de seres humanos para a extracção de órgãos que, constituindo, aparentemente, a menos frequente das três, é aquela que, compreensivelmente, nos choca mais.

CRIME:- - Como interpreta o facto deste assunto que envolve um crime horrendo não ter sido suscitado aquando da recente visita de Durão Barroso a Moçambique ? E, da mesma forma, como interpreta o desconhecimento que o presidente Chissano e a Procuradoria Geral da república de Moçambique evidenciaram ao serem interpelados sobre essa matéria pelos jornalistas ?

CARLOS COELHO: O assunto do tráfico de órgãos foi abordado na conversa entre o Presidente da República de Moçambique e o Primeiro-Ministro português como foi aliás expressamente reconhecido pelo primeiro em declarações à comunicação social.

Dada a natureza diplomática dos contactos pouco se sabe, mas diversos jornais tornaram público que o Primeiro Ministro português reiterou a disponibilidade para ajuda de Portugal nos esforços de investigação o que foi declinado pelo Presidente Moçambicano, Joaquim Chissano que afirmou que no actual estádio as autoridades moçambicanas "ainda não chegaram à conclusão" se será necessário pedir a ajuda internacional.

Parace-me aliás evidente nas respostas públicas de responsáveis moçambicanos que existe algum embaraço em torno desta questão. Na intervenção que produzi no plenário do Parlamento Europeu no dia 31.Março, referi-me expressamente ao facto, afirmando "queremos dizer aos governos e às autoridades judiciais e policiais dos Estados envolvidos que não há que recear a ajuda internacional para combater estes crimes. Ao fazê-lo não nos diminuimos, antes reforçamos instrumentos e meios para lutar contra um mal comum"

CRIME:- - Em entrevista ao semanário "o Independente", publicada no dia 2 de 2004, Afonso Dhlakama, líder da Renamo, afirma peremptoriamente que «há tráfico de órgãos em Moçambique» e acusa o Governo moçambicano de cumplicidade e de encobrir uma rede internacional de tráfico de órgãos com ligação às autoridades daquele país. Parece-lhe credível esta acusação, ou pensa que se trata apenas de uma manobra política do líder da oposição?

CARLOS COELHO: Custa-me a acreditar no envolvimento do governo moçambicano nesta rede criminosa. As autoridades judiciais e policiais moçambicanas prosseguem as investigações em torno dos indícios conhecidos. Pode ser forçado considerar como "tentativa de encobrimento" o facto de ainda não terem naturalmente chegado ao fim as investigações para o apuramento total dos factos.

Se o Dr. Afonso Dhlakama tem dados em sua posse que permitam envolver altos dirigentes moçambicanos na rede criminosa deve torná-los públicos junto das autoridades judiciais moçambicanas e da comunidade internacional.

CRIME:- - Por outro lado, as autoridades moçambicanas parecem muito interessadas em fazer passar a tese de que tudo não passa de casos ligados a ancestrais práticas de feitiçaria, considerando prematuro um pedido de ajuda internacional para a investigação do alegado tráfico de órgãos. Como avalia estas posições do governo moçambicano?

CARLOS COELHO: Foram invocados ligados a práticas ancestrais de feitiçaria e até a superstições que ligam a ingestão de órgãos genitais como processo para obter potência. Mas como afirmei no Plenário do Parlamento Europeu, "sob o ponto de vista ético, é-me completamente indiferente discutir as razões que motivam estas actividades criminosas, seja a prática da feitiçaria, o comércio de órgãos ou outro qualquer. Há seres humanos que precisam do nosso apoio e da nossa protecção que, ou ficam amputados de órgãos fundamentais ou que acabam, nesse processo, por perder a própria vida"

CRIME:- - Alguns conceituados médicos portugueses têm vindo a público defender que, dadas as condições técnicas e humanas necessárias para a extracção e reimplante de órgãos, lhes parece muito pouco provável que os casos de Nampula estejam relacionados com o tráfico internacional de órgãos. Como avalia esta posição?

CARLOS COELHO: Tomei nota das observações de reputados médicos portugueses que invocam a insuficiência de meios clínicos e técnicos para proceder com êxito à extracção de órgãos para posterior utilização clínica, mas verifiquei também a existência de alegações que invocam tráfico de seres humanos através da África do Sul onde os aludidos meios técnicos e hospitalares existem sem margem para dúvidas.

CRIME:- - Corrobora as afirmações do comissário europeu para a Justiça e Assuntos Internos, António Vitorino, de que o tráfico de orgãos é «um crime que beneficia da fraqueza das polícias locais e da corrupção» ?

CARLOS COELHO: Concordo. Mas é essa é uma evidência geral de todos os tipos de crime. Sempre que há fragilidades ou incompetência das autoridades policiais e/ou judiciais isso constitui, pela evidência da impunidade, um estímulo à proliferação das actividades criminosas. O mesmo se aplica à corrupção.

Esta é, aliás, uma das razões que levaram a União Europeia, no quadro do processo de alargamento, a acompanhar a consolidação e democratização dos aparelhos judiciais e policiais dos Estados candidatos e a cooperar no reforço da luta contra a corrupção.

CRIME:- - Tem conhecimento de haver outros países ( ou outros circuitos...) envolvendo o tráfico de orgãos. Portugal está fora desse «circuito» ?

CARLOS COELHO: Tem existido uma preocupação crescente com a emergência deste fenómeno lucrativo mas abominável que ameaça a integridade física das pessoas e que se tornou um campo de actividade privilegiada para as redes organizadas à custa dos grupos mais vulneráveis de pessoas como é o caso das crianças e de todos quantos vivem em situação de extrema pobreza.

No ano passado já tinha chamado a atenção do Parlamento Europeu na sua Sessão Plenária de Outubro para a situação chocante existente no Brasil e Guatemala com um elevadissimo número de raptos, tal como alertei para a situação de, com o alargamento da União, se poderem abrir rotas comerciais lucrativas. Particularmente preocupantes foram notícias provindas da Hungria e da República Checa.

Por outro lado, têm igualmente existido denúncias de casos na Moldávia, Albânia e Turquia.

Portugal não parece estar associado ao tráfico de pessoas para efeitos de extracção de órgãos, mas notícias vindos a público tornaram evidente a existência, no nosso país, de circuitos ligados à exploração de mão-de-obra ilegal (com ou sem relação com actividades de prostituição) bem como ao comércio de crianças para fins de adopção.