BREXIT: Schengen parece que não muda muito mas há pessoas que sofrem

21 de Novembro, 2019

 

BREXIT:  Schengen parece que não muda muito mas há pessoas que sofrem

 

Nathalie Loiseau é, hoje, Deputada ao Parlamento Europeu.  Antes, era Ministra francesa para os Assuntos Europeus, a mulher a quem o Presidente Macron confiou a responsabilidade de acompanhar o Brexit.

 

Loiseau fez as delícias da imprensa gaulesa e internacional quando revelou que baptizou o seu gato com o Nome de “Brexit.  De manhã mia desesperadamente para sair, abrem-lhe a porta e o gato hesita entre entrar e sair.  A dona tem de empurrar o felino para a rua, onde está pouco tempo, regressando à porta que arranha, enquanto mia ruidosamente até que lha abram novamente e lhe permitam regressar.

 

Quando Loiseau confessou que não tinha gato e que tinha inventado a história, todos a perdoaram porque a caricatura era deliciosa.  Não é apenas certeira hoje, com sucessivos adiamentos, atrasos e hesitações no processo de saída, como é o retrato da indecisão e da incerteza que continuamos a viver.  O Reino Unido foi sempre, na União Europeia, um Estado hesitante: entre estar dentro e estar fora, quis sempre uma Europa a la carte escolhendo os benefícios e fugindo às responsabilidades.  Enquanto Estado-Membro da União, na plenitude dos seus direitos, não assinou a Carta dos Direitos Sociais, não participa no Euro, e não integra o espaço Schengen... No fundo, sempre procurou o melhor de dois mundos: beneficiar de todas as vantagens e evitar todas as obrigações.  Esta postura foi a força de bloqueio de muitas reformas que adiamos, há demasiado tempo, na Europa.

 

O Reino Unido não está em Schengen

 

Além do Reino Unido nunca ter participado em Schengen (o que faz com que, neste particular, nada de muito diferente ocorra nos controlos de fronteiras antes e pós-Brexit), desde Cameron foi diminuindo ou eliminando a sua participação em diversas dimensões do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça.  Preferiu o opting-out em diferentes programas e regulamentos, não se considerou vinculado pela Carta dos Direitos Fundamentais da UE, “expulsou” o Colégio Europeu de Polícia (que foi transferido para a Hungria), reduziu a cooperação judicial e desistiu do Mandado de Detenção Europeu (mesmo quando havia bons exemplos da sua eficácia, com benefícios para o Reino Unido, no âmbito do combate à criminalidade internacional).  A decisão do Governo de Cameron de deixar de aplicar o Mandado de Detenção Europeu só foi revertida por decisão do Parlamento britânico que alterou algumas das medidas adoptadas pelo seu Governo na sequência da entrada em vigor do Tratado de Lisboa.

 

O afastamento dos britânicos relativamente à Europa dos Cidadãos traduz bem aquilo que, para eles, foi sempre a dimensão preferida:  o Mercado Interno, a Europa dos bens, serviços e capitais.

 

Schengen era um símbolo detestado não apenas porque europeízava os controlos de fronteiras (reduzindo a percepção da soberania britânica) mas sobretudo porque reforçava a liberdade de circulação tão atacada na imprensa inglesa.

 

Mas o importante são as pessoas !

 

Mas se assim é, se não participava em Schengen, o que muda drasticamente com o Brexit para tanta gente estar preocupada ?  Há muitos anos, li um livro de uma liberal britânica, Shirley Williams, chamado “A Política é para as Pessoas”.  Recordava que o que verdadeiramente interessa na política é que seja feita com dignidade e espírito de serviço:  É pensar naqueles cuja vida é afectada pelas decisões que tomamos.

 

Neste particular, são directa e especialmente afectadas cerca de 5 milhões de pessoas.   Há 3,5 milhões de cidadãos europeus a viver no Reino Unido e 1,5 milhões de britânicos noutros Estados da UE.  No caso dos portugueses a relação é ainda mais desigual:  para cerca de 400.000 portugueses em terras de Sua Majestade, haverá menos de 40.000 britânicos a viver em Portugal.

 

E o estatuto de toda esta gente muda radicalmente com o Brexit.  Enquanto Estado-Membro da UE, o Reino Unido é obrigado a reconhecer o estatuto de cidadania a qualquer “europeu” no seu território.  Não pode ser discriminado em função da nacionalidade, beneficia de protecção social, pode residir, estabelecer negócios e trabalhar livremente e sem precisar de autorização. 

 

Com o Brexit, estes 5 milhões de pessoas deixam de ser cidadãos e passam a ser “emigrantes”.  O seu estatuto e a sua protecção mudam significativamente.  E todos os britânicos no futuro passam a ser “estrangeiros” nos restantes Estados-Membros da União.  Todos os “europeus” serão igualmente considerados como cidadãos de países terceiros em território britânico.

 

Normas provisórias podem ser insuficientes

 

É verdade que o Acordo de Saída tem normas expressas para atenuar os efeitos desta mudança de estatuto para os “europeus” que já se encontram no Reino Unido e para os britânicos que se encontram noutros Estados da UE.

 

Os que se encontram no Reino Unido legalmente registados há pelo menos 5 anos podem pedir um estatuto de residência permanente (settled status ) e os que ainda não preenchem este requisite, mas estejam legalmente estabelecidos no Reino Unido até à data de saída da União Europeia, poderão pedir um estatuto de residência temporário (pre-settled status ) até completar os 5 anos de forma a poder então requerer o estatuto de residência permanente.

 

Estes dispositivos não conferem um direito automático.  As pessoas terão de requerer essas autorizações e as autoridades britânicas têm o direito de conceder ou não.  E qualquer regulamentação futura pode condicioná-las a exigências que hoje não são conhecidas como, por exemplo, a ligação entre a existência de contra-ordenações e a atribuição deste estatuto.  Ninguém pode garantir, por exemplo, que, no futuro, um automóvel mal estacionado não possa ter consequências na concessão destas autorizações.

 

Problemas de interpretação e dificuldades burocráticas e administrativas vão multiplicar-se muito provavelmente.

 

É verdade que muitos países já começaram a estabelecer Planos de contingência antevendo um Hard Brexit (uma saída sem acordo).  Portugal também o fez.  E concedeu, por via legislativa, direitos aos cidadãos britânicos que se encontram em Portugal na condição de reciprocidade para os portugueses que estão no Reino Unido.  Mas as negociações bilaterais serão consequência da força relativa de cada Estado.  A Espanha também o fez, só que está numa posição mais confortável.  Há quase 400.000 britânicos em Espanha (a maior comunidade britânica noutro Estado-Membros da UE) e apenas cerca de 180.000 espanhóis em terras britânicas.  Já Portugal é outra situação.  Por cada britânico em terras lusas, há 10 portugueses no Reino Unido…

 

Dados de cidadãos europeus poderão ficar mais fragilizados

 

No âmbito do Acordo de Saída estão previstas cláusulas de cooperação em matéria de segurança.  De ambos os lados parece haver interesse em prosseguir uma cooperação intergovernamental em matéria de informações e “inteligência” (serviços secretos).

 

O Reino Unido nunca escondeu o seu desejo de manter o acesso às bases de dados europeias, sobretudo ao SIS (Sistema de Informação de Schengen), mas igualmente a outras no âmbito do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça.  Isto, quando se ia desvinculando de quase todos os instrumentos e políticas nesta área.

 

A Task Force para Schengen, a que presidi no Parlamento Europeu nos últimos anos, assinalou e denunciou o facto do Reino Unido estar a usar as bases de dados (isto é, os dados que lá estão contidos, incluindo os de cidadãos europeus) em desrespeito de normas legais designadamente relacionadas com a protecção dos dados pessoais.  Recomendámos então que a autorização provisória que tinha sido dada ao Reino Unido devia ser revogada e interrompido um acesso que vulnerabilizava os nossos dados.

 

O facto do Brexit estar a ser negociado tornou inoportuno este debate mas as suas consequências para o futuro são evidentes.  Se enquanto Estado-Membro da UE (e sujeito às suas fiscalizações) o Reino Unido não cumpriu com a lei e vulnerabilizou os nossos dados será mais diligente no futuro se continuar a ter acesso a eles já não estando sujeito à tutela inspectiva da Comissão Europeia através do Sistema de Avaliação de Schengen?

 

Sol na eira e chuva no nabal

 

A ligeireza com que o Governo britânico olha para o Brexit é consequência da ilusão de que se pode estar fora da União Europeia continuando a beneficiar de muitos dos seus projectos. 

 

E muitos britânicos acreditam nisso.  Acham que é possível estar fora, não se sujeitando a regras comuns, não tendo responsabilidades financeiras e não sendo obrigados a respeitar a liberdade de circulação e ainda assim continuar a beneficiar do Mercado Interno, do Erasmus, das políticas de apoio à ciência e à inovação entre diversas outras.

 

Seria o mesmo que qualquer um de nós sairmos de um clube, deixarmos de pagar quotas e pretendermos continuar a beneficiar das aulas de ioga, termos acesso à piscina e manter o lugar reservado no estádio.

 

Os portugueses designam isso por sol na eira e chuva no nabal e reconhecem que é uma situação impossível.

 

Não faz nenhum sentido que quem sai do clube fique melhor do que quem lá está.  Se isso acontecesse corresponderia a um acto de auto-destruição porque todos os que estão dentro, numa situação dessas, prefeririam sair.  E isso seria o fim da UE.

 

Ninguém está, neste momento, em condições de garantir se vai ou não haver Brexit.  Mas, se houver, devemos encarar a saída do Reino Unido como uma oportunidade para a União protagonizar as reformas que há muito estão bloquedas por um Estado-Membro que sempre teve um pé fora e outro dentro.  E proteger os nossos cidadãos reforçando a liberdade de circulação no espaço Schengen e as medidas de segurança que lhe estão associadas.