A Nova Comissão Europeia
7. O caso Buttiglione
- Os casos polémicos
- Quem é Rocco Buttiglione
- A tensão prévia
- Erros de tradução ou manipulação deliberada?
- A pergunta crucial
- Um voto que não existiu
- O suspense do Plenário
Nas audições dos 24 Comissários indigitados poucos foram os processos "quentes" e limitaram-se sobretudo a:
R. Buttiglione (desenvolvido mais à frente)
I. Udre (problemas legais com financiamento irregular do seu partido nacional)
L. Kovács (total incompetência na área da energia)
N. Kroes (potenciais conflitos de interesse entre a área tutelada e o anterior desempenho profissional)
M. Fisher Boel (riscos de conflitos de interesse por ser beneficiária de financiamentos comunitárias enquanto proprietária agrícola)
O caso mais delicado foi no entanto o do indigitado candidato italiano a Vice-Presidente da Comissão e responsável pela Justiça e Assuntos Internos, Rocco Buttiglione.
Nascido em 1948, Rocco Buttiglione formou-se em direito e filosofia. Exerce o cargo de Professor universitário em várias universidades italianas e estrangeiras com responsabilidade na área do direito, da ciência política e da filosofia.
Foi membro do parlamento italiano a partir de 1994 e eleito ao Parlamento Europeu em 1999. Em 2001, foi Ministro dos Assuntos Europeus do governo de Silvio Berlusconi.
É casado e pai de 4 filhos. Fala 7 línguas correntemente.
Tal como outros candidatos a Comissários (casos de Kroes, Udre e Fisher Boel, pelo menos) havia já alguma tensão prévia relativamente à inclusão de Buttiglione no elenco da Comissão Europeia.
Alguns sugerem que os detractores estavam animados por uma lógica de política nacional (esquerda italiana contra Berlusconi), outros por motivações de lobbies diversos devido às posições conservadoras (conhecidas) do candidato. No entanto, em plena audição a questão mais delicada centrava-se na questão do asilo e do acolhimento de imigrantes.
O assunto não era estranho às tentativas de acordo que surgiram na altura entre a Itália e a Líbia mas foram exacerbadas por dois factos:
- a "invasão" de Lampedusa (uma pequena ilha italiana onde desembarcaram navios carregados de imigrantes ilegais vindos do outro lado do Mediterrâneo);
- o acolhimento favorável por parte de Buttiglione, no Conselho e em declarações públicas posteriores (enquanto ministro de Berlusconi) da proposta do seu colega alemão, o ministro Otto Schily relativamente à criação de centros de refugiados no exterior da U.E. (campos de triagem de candidatos à imigração ou ao asilo, rapidamente baptizados pelos seus opositores de "campos de concentração").
A meu ver a aceitação por parte do Buttiglione da complexa e indesejável proposta de Schily foi uma imprudência. Ainda que ela correspondesse ao interesse italiano (particularmente reavivado pela "invasão" de Lampedusa), Buttiglione já era candidato a um posto europeu, onde deve responder pelo interesse comum e não de alguns Estados-membros.
Mas é verdadeiramente hilariante ver a esquerda europeia atacar Buttiglione por apoiar uma proposta avançada e defendida pelo ministro alemão socialista.
Talvez também por isso o ataque da esquerda a Buttiglione não se centrou nesta questão mas em declarações que ele não proferiu no sentido que lhe foram atribuídas publicamente como mais à frente se verá.
Erros de tradução ou manipulação deliberada?
Vieram a público excertos de declarações que efectivamente não foram produzidas.
As declarações integrais de Rocco Buttiglione podem aqui ser consultadas na versão original ou na tradução inglesa.
Curiosamente, o único momento de tensão que ocorreu durante as 3 horas de audição nunca foi referido em nenhum órgão de comunicação social (veja mais à frente "A Pergunta Crucial").
Foram, sobretudo três as afirmações "infelizes" atribuídas a Buttiglione. As duas primeiras são grosseiras mistificações. A terceira foi produzida em Itália e só a posso avaliar pelos relatos da imprensa internacional.
Primeira - As mulheres devem ficar em casa
Atribui-se a Buttiglione a afirmação que as mulheres devem ficar em casa a ter filhos negando-lhes a possibilidade de uma carreira profissional, cabendo ao homem trabalhar e prover o sustento da família. Perguntado sobre o que achava do casamento entre pessoas do mesmo sexo, Rocco Buttiglione referiu-se à origem semântica da palavra "mariage" (casamento heterossexual) e sublinhou que essa não era uma questão política.
Buttiglione: "A minha opinião pessoal é conhecida. A palavra casamento (mariage) vem do latim "matrimonium" que significa "protecção da mulher". Assim a família existe para permitir à mulher a protecção de um homem de forma a que ela possa ter filhos e todos sejam apoiados. Esta é a imagem tradicional do casamento que eu defendo. Não penso porém que esta questão seja relevante para a nossa área (Área da Liberdade, Segurança e Justiça, em audição) porque a definição de casamento é competência dos Estados-Membros.
Portanto pense eu o que pensar, isso não tem nenhuma consequência e embora esta seja a visão partilhada hoje por 22 dos 25 Estados-Membros, esta não é uma matéria da União e não deve tornar-se numa competência da União. Deve continuar a ser competência dos Estados-membros de acordo com o princípio da subsidiariedade".
Segunda - Os homossexuais são pecadores
Atribuiu-se a Buttiglione uma intolerância grave contra os homossexuais considerando-os pecadores, daí desqualificando-o como comissário encarregue da luta contra a discriminação. Com efeito Buttiglione, em declarações públicas há alguns anos atrás, tinha-se referido à homossexualidade como um pecado, uma "desordem moral" . Na audição porém, foi claro ao citar Emmanuel Kant estabelecendo uma clara distinção entre a lei e a moral, respondendo à Deputada Buitenweg (Verde, Holandesa).
Buttiglione: "Há muitas coisas que podem ser consideradas imorais que não devem ser proibidas. Quando estamos na política não renunciamos ao direito de ter convicções morais e eu posso pensar que a homossexualidade é um pecado sem que isso tenha qualquer efeito político a menos que eu queira invocar que a homossexualidade deva ser um crime. Na mesma linha, a Senhora Deputada é livre de pensar que eu sou um pecador em diversos aspectos da minha vida e isso não afecta a nossa relação enquanto cidadãos. Não creio que seja razoável presumir que toda a gente está de acordo em questões de moral.
Podemos construir uma comunidade de cidadãos mesmo que tenhamos diferentes opiniões em questões de moral. A questão importante é, porém, a não discriminação. O Estado não tem o direito de se envolver nestes assuntos e ninguém pode ser discriminado com base no seu sexo ou na sua orientação sexual. Esta é uma garantia da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, está inscrita na nossa Constituição e eu comprometo-me a defender esta Constituição".
Terceira: As mães solteiras são más mães
A semana que se seguiu às audições foi de grande alarido na comunicação social. Não apenas pela interpretação dada às afirmações que acima se reproduziram ou à divulgação pública de um voto de rejeição que nunca existiu (ver "um voto que nunca existiu") mas também com excessos de linguagem que comportaram um alto nível de agressividade.
Não ajudaram em nada as afirmações públicas de um membro do Governo de Berluscconi, o Ministro Mirko Tremaglia de 78 anos que acusou a maioria dos deputados europeus de serem "maricas" (com uma palavra mais forte, em italiano "culattoni" ). Na sessão plenária de 14 de Outubro dezenas de deputados da esquerda ostentaram cartazes em que se podia ler "Siamo culattoni" para gáudio de muitos outros o que veio acentuar um ambiente de pantomina a um debate que se queria sério e sereno.
Entretanto, Rocco Buttiglione foi acusado de ter dito que as mães solteiras são más mães.
O contexto foi uma vez mais completamente diferente. Aparentemente, numa conferência sobre as relações transatlânticas, Buttiglione terá usado metáforas mitológicas para insinuar que enquanto os Estados Unidos são filhos de Marte (o Deus da guerra), a Europa seria filha de Vénus e defendeu uma união dos dois porque os filhos devem ter pai e mãe.
De nada valeu ao Comissário indigitado protestar publicamente o respeito pelas mães que sozinhas assumem a responsabilidade de criar os seus filhos (em concordância lógica com a sua recusa do aborto).
A frase efectivamente pronunciada deve ter sido infeliz e retirada do contexto foi mortal. Nos corredores do Parlamento Europeu a última frase foi incendiária e as "single mother" (tanto mãe solteira, como mãe sozinha, divorciada ou viúva) expressaram-se ruidosamente. A candidatura de Buttiglione terminou aí...
Durante toda a audição houve, na minha opinião, apenas um momento verdadeiramente tenso.
Foi protagonizado pelo Deputado Cashman (Inglês socialista). Depois de várias declarações claras de Buttiglione em favor do combate às discriminações, Cashman disse "não creio que o devamos julgar pelas suas palavras mas antes pelas suas acções. Disse-nos hoje que o Estado não tem o direito de se envolver nas questões que têm a ver com a orientação sexual. Como explica então que tenha apresentado, na Convenção para o Futuro da Europa, uma proposta que visava eliminar da Constituição a referência à orientação sexual no combate às discriminações?"
Foi um gelo na sala.
O único momento em toda a audição em que se sentiu verdadeiramente a tensão.
Uma coisa eram declarações avulsas sobre "desordens morais" outra era uma militância activa contra os homossexuais.
Independentemente das motivações íntimas (e que não é possível desvendar) de Buttiglione quando apresentou a proposta, a explicação jurídica foi clara e o compromisso com o texto da Constituição irrefutável:
Buttiglione: "Quando definimos o princípio da não discriminação, não pretendíamos que ele fosse aplicado apenas num número limitado de casos que estavam enumerados. O princípio é universal. Deve ser aplicado em muitas e variadas áreas e não creio que constituísse um reforço para a sua aplicação referir em especial o caso dos homossexuais.
Mas em qualquer circunstância, esse debate está encerrado. Não tenho dúvidas que se o Senhor Deputado Cashman a tivesse escrito sozinho teríamos uma Constituição ou uma Carta dos Direitos Fundamentais diferente. E se fosse eu a fazê-lo teríamos também uma Carta e uma Constituição diferentes. Mas esta é a Constituição que escrevemos em conjunto e esta é a Constituição que nos liga, sob a qual estou disposto a viver e esta é a Carta dos Direitos que eu quero defender".
Uma das afirmações mais repetidas pela imprensa foi a que o Parlamento tinha rejeitado Buttiglione e que essa era a consequência das audições realizadas.
Também aqui houve uma grande mistificação. Com efeito o Parlamento não tem o poder de aprovar ou recusar cada Comissário individualmente. O Parlamento aprova ou recusa a Comissão no seu conjunto e para esse debate contribuem os relatórios que as comissões produzem sobre as audições.
Ora, nas cartas que o Presidente do Parlamento Europeu recebeu e que remeteu a Durão Barroso, havia duas com conteúdos opostos (o Comissário indigitado Buttiglione respondeu em audições diferentes perante a Comissão das Liberdades Públicas e a Comissão de Assuntos Jurídicos). Enquanto que a Comissão dos Assuntos Jurídicos recomendou o candidato ver carta aqui a das Liberdades Públicas deu um parecer negativo ver carta aqui.
Não é pois possível afirmar seriamente que o Parlamento "chumbou" Buttiglione. Em bom rigor, o Parlamento "empatou" com uma posição favorável e outra desfavorável.
Mas o mais surpreendente é que a posição "desfavorável" da Comissão de Liberdades Públicas não correspondeu a nenhuma deliberação, mas tão só a uma "interpretação" do seu Presidente o francês liberal Bourlanges.
Com efeito, foram apresentadas duas propostas de sentido oposto e ambas foram rejeitadas. Com 27 votos contra e 26 a favor, foi rejeitada uma proposta do PPE que apoiava a designação de Butigglione e com 28 contra e 25 a favor foi rejeitada a proposta socialista que recusava Buttiglione para a pasta da Justiça e Assuntos Internos (embora o aceitasse como Vice-Presidente da Comissão Europeia).
A aludida recusa de Buttiglione corresponde assim a um voto que não existiu. A Comissão de Liberdades Públicas não votou a recusa a Buttiglione, porque rejeitou ambas as propostas. Na verdade, a Comissão de Liberdades Públicas não foi capaz de tomar uma deliberação, ao contrário da Comissão Jurídica que "aprovou" o comissário indigitado, mas a leitura publica foi a de que o "Parlamento Europeu rejeitou Rocco Buttiglione".
No dia 27 de Outubro o plenário do Parlamento Europeu devia votar a investidura da Comissão. Quando ninguém esperava, Durão Barroso, numa iniciativa inédita retirou a sua proposta de elenco da Comissão Europeia para a repensar em conjunto com os governos dos Estados-Membros.
Porque é que Durão Barroso deu provas de apreciável flexibilidade e engenho?
Porque constatou, nos contactos com os grupos políticos, a total divisão do Parlamento Europeu.
Segundo alguns, corria o risco de perder, segundo outros (mais informados) o mais provável seria ganhar mas numa eleição renhida e eventualmente graças aos votos embaraçosos de proeminentes figuras da extrema-direita europeia.
Ambas as situações seriam indesejáveis.
Com efeito, o processo de decisão comunitário assenta no compromisso de forma a conciliar os diferentes interesses nacionais e as diversas posições políticas.
Seria frágil a posição de uma comissão enfraquecida com a hostilidade de metade do hemiciclo.
Foi prudente e politicamente inteligente a iniciativa do Durão Barroso. E dela resultaram a substituição dos Comissários indigitados - Buttiglione por Frattini e Udre por Piebalgs e a troca de pelouro do húngaro Kovács que se revelou totalmente incompetente nas questões de energia para que inicialmente tinha sido apontado.
Teria sido preferível a substituição do Sr. Kovács mas a intransigência do governo húngaro que insistiu em manter um candidato desqualificado não o permitiu.