A Europa que queremos é servida pelo Tratado Constitucional ?

9 de Julho, 2004

Quero antes de mais agradecer o simpático convite da Fundação FAES que me foi transmitido por José Herrera para participar neste debate com tão ilustre companhia.

 

Tenho a certeza que o meu amigo Vidal-Quadras Vice-Presidente do Parlamento Europeu subscreve a sensação que eu e muitos dos nossos colegas tiveram da perda que constituiu para o Parlamento Europeu o facto de Ana Palácio ter sido chamada a assumir novas funções.

 

Todos compreendemos que ela tivesse de tivesse de aceitar o convite irrecusável para Ministra dos Negócios Estrangeiros, mas o Parlamento Europeu perdeu uma notável Deputada e uma excelente Presidente da Comissão de Liberdades Públicas.

 

A pergunta do nosso painel que Ana Palácio modera é “Serve este Tratado Constitucional para a Europa que queremos?”.

 

A minha resposta é claramente que: Sim!

 

O Tratado podia ser melhor. Há pormenores com que não concordamos.  Mas, no seu conjunto, este Tratado é uma boa solução e comporta um valor histórico significativo.

 

A União Europeia dotou-se pela primeira vez de uma Constituição.  Só este facto já era tido como altamente improvável há alguns anos atrás.  Nesta Constituição figura um elenco de direitos dos cidadãos europeus, com força obrigatória perante qualquer jurisdição.

 

Como tudo na Europa, trata-se de um compromisso.  E quem diz compromissos, diz que cada um encontra neste texto grandes vitórias e pequenas derrotas.  Todos os Chefes de Estado e de Governo saíram da Conferência Intergovernamental convencidos de terem defendido com sucesso os seus interesses nacionais.  Assim, perante a sua respectiva opinião pública, cada um proclama a sua vitória.

 

No início dos negociações, o Conselho Europeu foi, mais uma vez, palco de um combate entre Estados Membros, desta vez complexo.  Além dos “grandes” contra os “pequenos”, dos “federalistas” contra os “intergovernamentais”, houve ainda divisões deixadas pela crise no Iraque (“atlantismo” britânico – espanhol – português contra “continentalismo” franco – alemão).  Foi só mais um round no combate que tão claro tinha sido já em Nice em 2000.

 

Prevaleceu a vontade de evitar a todo custo uma nova crise que abriria uma nova brecha na credibilidade da União Europeia.  Muitos dos resultados alcançados, devem-se à Presidência irlandesa que desempenhou um trabalho metódico e paciente na convergência das diferentes posições.

 

Mas ao fim e ao cabo, o importante foi mesmo ter alcançado um acordo. Como disse o ainda Presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, dentro de dias, já ninguém se recordará dos detalhes das negociações, mas apenas que a União Europeia aprovou a sua Constituição.

 

O objectivo é de criar as condições para que a União Europeia possa fazer face ao desafio do alargamento.  Tanto na perspectiva de um funcionamento mais eficaz, transparente e democrático, como na perspectiva de um aprofundamento gradual do projecto europeu.

 

Para Portugal havia três princípios que considerávamos e consideramos fundamentais:

 

1.       O princípio da igualdade entre os Estados Membros, porque entendemos que o Tratado deve reflectir a dupla natureza da União, uma União de cidadãos mas também de Estados;

 

2.       O princípio da coesão e da solidariedade, porque sem coesão e solidariedade o próprio conceito e projecto de União deixa de fazer qualquer sentido;

 

3.       O princípio do respeito pelo método comunitário porque sem método comunitário é impossível fazer avançar o projecto europeu com coerência e no respeito do papel de todos os Estados Membros, independentemente das suas respectivas dimensões.

 

E estes princípios foram respeitados no texto final do Tratado Constitucional.

 

O princípio da igualdade entre os Estados Membros ficou explicitamente consagrado na Parte I do Tratado, no artigo I-5.

 

O texto relativo à Coesão Económica e Social que está no artigo III-116 tem agora uma redacção equilibrada.

 

O método comunitário fica preservado.  De facto, não se registaram renacionalizações de competências, foi confirmado o direito de iniciativa da Comissão e alargaram-se as áreas de co-decisão entre o Conselho e o Parlamento.

 

Verificam-se igualmente mudanças significativas no quadro institucional da União Europeia.  Gostaria rapidamente de enumerar 13 (não sou supersticioso):

 

1.     A unificação dos Tratados;

 

2.     Desaparece definitivamente a estrutura dos três pilares (Comunidades – PESC – JAI). Ficam claramente limitadas as competências respectivas ou partilhadas entre as instituições e os Estados Membros. Ana Palácio recorda-se bem do absurdo que constituía esta estrutura jurídica.

 

Frequentemente no processo legislativo as instituições discutiam mais a base jurídica que lhes atribuía mais ou menos poder e menos a substância do acto legislativo;

 

3.     Uma EU com personalidade jurídica que poderá subscrever os Tratados internacionais;

 

4.     A integração da Carta dos Direitos Fundamentais, proclamada em 2000 na Cimeira de Nice, com o elenco dos direitos dos cidadãos europeus em matéria de liberdade, dignidade, justiça, …;

 

5.     A criação do cargo de Ministro Europeu dos Negócios Estrangeiros para conduzir a PESC, acumulando ao mesmo tempo a Vice Presidência da Comissão Europeia;

 

6.     A instauração de “cooperações reforçadas” na área da defesa, assim como a adopção de uma cláusula de solidariedade entre Estados Membros em caso de serem alvo de um ataque terrorista ou vítima de uma calamidade;

 

7.     A criação de um direito de iniciativa popular (com 1 milhão de assinaturas) que obrigue a Comissão Europeia a apresentar uma iniciativa legislativa;

 

8.     A possibilidade de um Estado Membro poder solicitar a sua saída da União Europeia;

 

9.     A multiplicação dos casos de votação por maioria qualificada (imigração e asilo) que abrangem já 34 áreas. Permanência do direito de veto na fiscalidade, política social, política externa, defesa e orçamento plurianual. A instauração de um sistema de “dupla maioria” para as votações (55% dos Estados Membros e 65% da população). Qualquer minoria de bloqueio deverá integrar pelo menos 4 Estados Membros;

 

10.           A eleição do Presidente da Comissão Europeia pelo Parlamento Europeu por maioria, sob proposta do Conselho Europeu;

 

11.  O aumento dos poderes legislativos do Parlamento Europeu com mais áreas de co-decisão. Fixou-se ainda o número de Deputados Europeus em 750, com um máximo de 96 e um mínimo de 6 por país;

 

12. O reforço dos Parlamentos nacionais quer no âmbito das competências da União, quer no próprio processo de decisão:

 

13.  A tipificação e redução dos actos jurídicos.

 

Alguns outros pontos que ficaram contemplados são particularmente importantes para Portugal. Gostaria de destacar 7:

 

1. O reforço do estatuto das regiões ultraperiféricas, o que nos permite agora dispor de um instrumento mais eficaz para apoiar as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, atentas as suas especificidades (artigo III-330);

 

2. A manutenção de um sistema coerente no exercício das Presidências do Conselho (decisão do Conselho prevista no artigo I-23) através da consagração de Presidências de grupo de 3 países por 18 meses: neste sistema cada um dos Estados detém, durante 6 meses, as Presidências de todas as formações, sendo assistido pelos outros dois Estados. O aspecto curioso desta questão é que o sistema actual que foi tão condenado por alguns países e que era defendido por Portugal é na prática idêntico à solução que foi agora encontrada;

 

3. A inclusão no Tratado, como competências complementares ou de apoio da União, do Turismo (artigo I-16 e III-181-a) e do Desporto (artigo I-16 e III-182);

 

4. A referência explícita à preservação do acervo comunitário que é feita no Preâmbulo do Tratado;

 

5. As cooperações estruturadas na PESD (artigo I-40, nº 7 e Protocolo anexo) e a nova cláusula de defesa mútua (artigo I-40 nº 6) obedecem – na linha do que Portugal sempre defendeu – a uma lógica de complementaridade com a NATO;

 

6. A confirmação da possibilidade de celebração de acordos bilaterais entre um Estado Membro e países terceiros na área JAI (consagrada numa declaração anexa ao Tratado), e que é especialmente importante para Portugal no âmbito das suas relações com os outros países do mundo de língua oficial portuguesa;

 

7. O Conselho Europeu, agora elevado a instituição, passa a ser controlado na sua actividade legislativa pelo Tribunal de Justiça da União (III-270).

 

Trata-se de um texto necessariamente imperfeito, fruto de um processo de compromisso, mas apesar de tudo original nalgumas das soluções apresentadas. A adopção do Tratado Constitucional pela EU é um acto com um peso político forte.

 

A construção europeia realizou-se alternando períodos de grandes sucessos com momentos de percalços políticos. Hoje em dia, cada Conselho Europeu é o espaço de conflitos entre Estados Membros. Mas destes conflitos nasce sempre a consciência que não há futuro para os cidadãos europeus que somos sem a Europa unida. Precisamos de uma União Europeia reforçada, credível e solidária.

 

Finalmente queria agradecer e dar testemunho público do empenho e da qualidade de muitos colegas espanhóis na concepção e na defesa destas soluções quer na Convenção para o Futuro da Europa e no Conselho, quer na Comissão e no Parlamento Europeu.

 

Não sendo possível referir todos e não falando dos que hoje aqui estão presentes, quero prestar homenagem à energia e à criativadade de Mendez de Vigo na Convenção para o Futuro da Europa  e na sagesa             de essa grande figura que foi Presidente do Parlamento Europeu e que se destacou na Comissão dos Assuntos Constitucionais, o Presidente Gil-Robles.

 

Muito obrigado pela vossa atenção e as minhas desculpas pelos erros em espanhol.

 

 

Nota sobre a aproximação aos cidadãos

 

Na sua génese, um dos objectivos do Tratado Constitucional era precisamente servir de instrumento que aproxime os cidadãos das suas instituições europeias. Era suposto ser um elenco de normas simples e compreensíveis por todos nós. Foi uma das linhas de orientação dos trabalhos da Convenção para o futuro da Europa.

 

Quero expressar uma opinião pessoal. Para mim houve um equívoco inicial: ao querer fazer do Tratado Constitucional um instrumento para aproximar os cidadãos da construção europeia, partiu-se de um diagnóstico errado. Não creio que os europeus se sintam mais mobilizados para a construção europeia por via dos dossiers institucionais. Essa pedagogia pode e deve ser feita no quadro da educação cívica por via do sistema de ensino e com expressão nos dossiers que mais interesse directo têm para a vida das pessoas.

 

 

Nota sobre a ratificação

 

Convém chamar a atenção para a importância do processo de ratificação.

 

Depois de ter sido adoptado de forma consensual pela Convenção Europeia para o futuro da EU, o Tratado Constitucional foi aprovado por unanimidade pelos 25 Chefes de Estado ou de Governo. Inicia-se agora a última fase: um período de 2 anos para os Estados Membros procederem à ratificação do texto, pelos seus Parlamentos nacionais e/ou por referendo directo dos cidadãos europeus.

 

Alguns Estados Membros já decidiram não realizar um refendo, pelos motivos mais variados: falta de tradição de consulta popular ou falta de estabilidade política para viabilizar uma solução rápida.

 

Outros, também por motivos diversos, optaram por submeter o documento final à legitimidade popular. Dinamarca, Espanha, Irlanda e Reino Unido já se prenunciaram a favor da consulta. Espero que venha a ser também o caso de Portugal realizando um referendo à Constituição Europeia. A ser realizado, será uma nova forma de combater o défice de debate sobre a construção europeia, envolvendo directamente os cidadãos e, no meu país, retirar um argumento aos eurocépticos que invocam uma suposta falta de legitimidade pelo facto do desígnio de participação de Portugal no processo de construção europeia não ter sido submetido ao voto dos portugueses mas apenas ter sido viabilizado pelo voto Parlamentar.