A Europa que queremos é servida pelo Tratado Constitucional ?
Quero antes de mais agradecer o simpático convite
da Fundação FAES que me foi transmitido por José Herrera para participar neste debate com tão ilustre
companhia.
Tenho a certeza que o meu amigo Vidal-Quadras
Vice-Presidente do Parlamento Europeu subscreve a sensação que eu
e muitos dos nossos colegas tiveram da perda que constituiu para o Parlamento
Europeu o facto de Ana Palácio ter sido chamada a assumir novas
funções.
Todos compreendemos que ela tivesse de tivesse de aceitar
o convite irrecusável para Ministra dos Negócios Estrangeiros,
mas o Parlamento Europeu perdeu uma notável Deputada e uma excelente
Presidente da Comissão de Liberdades Públicas.
A pergunta do nosso painel que Ana Palácio modera
é “Serve este Tratado
Constitucional para a Europa que queremos?”.
A minha resposta é claramente que: Sim!
O Tratado podia
ser melhor. Há pormenores com que não concordamos.
Mas, no seu conjunto, este
Tratado é uma boa solução e comporta um valor
histórico significativo.
A União Europeia dotou-se pela primeira vez de uma Constituição. Só este facto já era
tido como altamente improvável há alguns anos atrás.
Nesta
Constituição figura um elenco de direitos dos
cidadãos europeus, com força obrigatória perante
qualquer jurisdição.
Como tudo na
Europa, trata-se de um compromisso. E quem diz compromissos, diz
que cada um encontra neste texto grandes vitórias e pequenas derrotas. Todos
os Chefes de Estado e de Governo saíram da Conferência
Intergovernamental convencidos de terem defendido com sucesso os seus
interesses nacionais. Assim, perante a sua respectiva
opinião pública, cada um proclama a sua vitória.
No início dos negociações, o Conselho
Europeu foi, mais uma vez, palco de um
combate entre Estados Membros, desta vez complexo. Além dos “grandes”
contra os “pequenos”, dos “federalistas” contra os
“intergovernamentais”, houve ainda divisões deixadas pela
crise no Iraque (“atlantismo”
britânico – espanhol – português contra “continentalismo” franco – alemão).
Foi só mais um round no combate que tão claro tinha sido já
em Nice em 2000.
Prevaleceu a vontade
de evitar a todo custo uma nova crise que abriria uma nova brecha na
credibilidade da União Europeia. Muitos dos resultados
alcançados, devem-se à Presidência irlandesa que
desempenhou um trabalho metódico e paciente na convergência das
diferentes posições.
Mas ao fim e ao cabo, o importante foi mesmo ter
alcançado um acordo. Como disse o ainda Presidente da Comissão
Europeia, Romano Prodi, dentro de dias, já
ninguém se recordará dos detalhes das negociações,
mas apenas que a União Europeia aprovou a sua
Constituição.
O objectivo
é de criar as condições para que a União Europeia
possa fazer face ao desafio do alargamento. Tanto na perspectiva de um
funcionamento mais eficaz, transparente e democrático, como na
perspectiva de um aprofundamento gradual do projecto europeu.
Para Portugal havia três princípios que
considerávamos e consideramos fundamentais:
1. O princípio da igualdade entre os Estados Membros,
porque entendemos que o Tratado deve reflectir a dupla natureza da
União, uma União de cidadãos mas também de Estados;
2. O
princípio da coesão e da solidariedade, porque sem coesão e
solidariedade o próprio conceito e projecto de União deixa de
fazer qualquer sentido;
3. O
princípio do respeito pelo método comunitário porque sem método
comunitário é impossível fazer avançar o projecto
europeu com coerência e no respeito do papel de todos os Estados Membros,
independentemente das suas respectivas dimensões.
E estes princípios foram respeitados no texto final
do Tratado Constitucional.
O
princípio da igualdade entre os Estados Membros ficou explicitamente consagrado na
Parte I do Tratado, no artigo I-5.
O texto relativo à Coesão Económica e Social que está no artigo
III-116 tem agora uma redacção equilibrada.
O método
comunitário fica preservado. De facto, não se registaram renacionalizações
de competências, foi confirmado o direito de iniciativa da
Comissão e alargaram-se as áreas de co-decisão
entre o Conselho e o Parlamento.
Verificam-se igualmente mudanças significativas no
quadro institucional da União Europeia. Gostaria rapidamente de enumerar
13 (não sou supersticioso):
1. A unificação dos Tratados;
2. Desaparece
definitivamente a estrutura dos três pilares (Comunidades – PESC –
JAI). Ficam claramente limitadas as competências respectivas ou
partilhadas entre as instituições e os Estados Membros. Ana
Palácio recorda-se bem do absurdo que constituía esta estrutura
jurídica.
Frequentemente no processo legislativo
as instituições discutiam mais a base jurídica que lhes
atribuía mais ou menos poder e menos a substância do acto
legislativo;
3. Uma EU com personalidade jurídica que poderá subscrever os
Tratados internacionais;
4. A integração da Carta dos Direitos Fundamentais,
proclamada em 2000 na Cimeira de Nice, com o elenco
dos direitos dos cidadãos europeus em matéria de liberdade,
dignidade, justiça, …;
5. A criação do
cargo de Ministro Europeu dos
Negócios Estrangeiros para conduzir a PESC, acumulando ao mesmo
tempo a Vice Presidência da Comissão Europeia;
6. A instauração de
“cooperações
reforçadas” na área da defesa, assim como a
adopção de uma cláusula de solidariedade entre Estados
Membros em caso de serem alvo de um ataque terrorista ou vítima de uma
calamidade;
7. A criação de um direito de iniciativa popular (com 1
milhão de assinaturas) que obrigue a Comissão Europeia a
apresentar uma iniciativa legislativa;
8. A possibilidade de um Estado
Membro poder solicitar a sua saída
da União Europeia;
9. A multiplicação
dos casos de votação por
maioria qualificada (imigração e asilo) que abrangem
já 34 áreas. Permanência do direito de veto na fiscalidade,
política social, política externa, defesa e orçamento
plurianual. A instauração de um sistema de “dupla maioria” para as
votações (55% dos Estados Membros e 65% da
população). Qualquer minoria de bloqueio deverá integrar
pelo menos 4 Estados Membros;
10.
A eleição do
Presidente da Comissão Europeia pelo Parlamento Europeu por maioria,
sob proposta do Conselho Europeu;
11. O
aumento dos poderes legislativos do Parlamento Europeu com mais áreas de co-decisão. Fixou-se ainda o número de Deputados Europeus em 750, com um máximo de
96 e um mínimo de 6 por país;
12. O reforço dos Parlamentos nacionais quer no
âmbito das competências da União, quer no próprio
processo de decisão:
13. A tipificação e
redução dos actos jurídicos.
Alguns outros pontos que ficaram contemplados são
particularmente importantes para Portugal. Gostaria de destacar 7:
1. O reforço
do estatuto das regiões ultraperiféricas, o que nos permite agora
dispor de um instrumento mais eficaz para apoiar as Regiões
Autónomas dos Açores e da Madeira, atentas
as suas especificidades (artigo III-330);
2. A
manutenção de um sistema coerente no exercício das
Presidências do Conselho (decisão do Conselho prevista no
artigo I-23) através da consagração de Presidências
de grupo de 3 países por 18 meses: neste sistema cada um dos Estados
detém, durante 6 meses, as Presidências de todas as
formações, sendo assistido pelos outros dois Estados. O aspecto
curioso desta questão é que o sistema actual que foi tão
condenado por alguns países e que era defendido por Portugal é na
prática idêntico à solução que foi agora
encontrada;
3. A inclusão no Tratado, como competências
complementares ou de apoio da União, do Turismo (artigo I-16 e III-181-a) e do Desporto (artigo I-16 e
III-182);
4. A referência explícita à
preservação do acervo comunitário que é feita no
Preâmbulo do Tratado;
5. As
cooperações estruturadas na PESD (artigo I-40, nº 7 e
Protocolo anexo) e a nova cláusula
de defesa mútua (artigo I-40 nº 6) obedecem – na linha do
que Portugal sempre defendeu – a uma lógica de complementaridade
com a NATO;
6. A confirmação da possibilidade de celebração de acordos bilaterais entre
um Estado Membro e países terceiros na área JAI (consagrada
numa declaração anexa ao Tratado), e que é especialmente
importante para Portugal no âmbito das suas relações com os
outros países do mundo de língua oficial portuguesa;
7. O Conselho
Europeu, agora elevado a instituição, passa a ser controlado na sua actividade legislativa pelo Tribunal de
Justiça da União (III-270).
Trata-se de um
texto necessariamente imperfeito, fruto de um processo de compromisso, mas
apesar de tudo original nalgumas das soluções apresentadas. A
adopção do Tratado Constitucional pela EU é um acto com um
peso político forte.
A construção europeia realizou-se alternando
períodos de grandes sucessos com momentos de percalços
políticos. Hoje em dia, cada Conselho Europeu é o espaço
de conflitos entre Estados Membros. Mas destes conflitos nasce sempre a
consciência que não há futuro para os cidadãos
europeus que somos sem a Europa unida. Precisamos de uma União Europeia
reforçada, credível e solidária.
Finalmente queria agradecer e dar testemunho
público do empenho e da qualidade de muitos colegas espanhóis na
concepção e na defesa destas soluções quer na
Convenção para o Futuro da Europa e no Conselho, quer na
Comissão e no Parlamento Europeu.
Não sendo possível referir todos e
não falando dos que hoje aqui estão presentes, quero prestar
homenagem à energia e à criativadade de
Mendez de Vigo na Convenção para o
Futuro da Europa
e na sagesa
de essa grande figura que foi Presidente do Parlamento Europeu e que se
destacou na Comissão dos Assuntos Constitucionais, o Presidente Gil-Robles.
Muito obrigado pela vossa atenção e as
minhas desculpas pelos erros em espanhol.
Nota sobre a
aproximação aos cidadãos
Na sua génese, um dos objectivos do Tratado
Constitucional era precisamente servir de instrumento que aproxime os
cidadãos das suas instituições europeias. Era suposto ser um elenco de normas simples e
compreensíveis por todos nós. Foi uma das linhas de
orientação dos trabalhos da Convenção para o futuro
da Europa.
Quero expressar uma opinião pessoal. Para mim houve
um equívoco inicial: ao querer fazer do Tratado Constitucional um
instrumento para aproximar os cidadãos da construção
europeia, partiu-se de um diagnóstico errado. Não creio que os
europeus se sintam mais mobilizados para a construção europeia
por via dos dossiers institucionais. Essa pedagogia pode e deve ser feita no
quadro da educação cívica por via do sistema de ensino e
com expressão nos dossiers que mais interesse directo têm para a
vida das pessoas.
Nota sobre a
ratificação
Convém chamar a atenção para a
importância do processo de ratificação.
Depois de ter sido adoptado de forma consensual pela
Convenção Europeia para o futuro da EU, o Tratado Constitucional
foi aprovado por unanimidade pelos 25 Chefes de Estado ou de Governo. Inicia-se
agora a última fase: um período de 2 anos para os Estados Membros
procederem à ratificação do texto, pelos seus Parlamentos
nacionais e/ou por referendo directo dos cidadãos europeus.
Alguns Estados Membros já decidiram não
realizar um refendo, pelos motivos mais variados: falta de
tradição de consulta popular ou falta de estabilidade
política para viabilizar uma solução rápida.
Outros, também por motivos diversos, optaram por
submeter o documento final à legitimidade popular. Dinamarca, Espanha, Irlanda
e Reino Unido já se prenunciaram a favor da consulta. Espero que venha a
ser também o caso de Portugal realizando um referendo à
Constituição Europeia. A ser realizado, será uma nova
forma de combater o défice de debate sobre a construção
europeia, envolvendo directamente os cidadãos e, no meu país,
retirar um argumento aos eurocépticos que
invocam uma suposta falta de legitimidade pelo facto do desígnio de
participação de Portugal no processo de construção
europeia não ter sido submetido ao voto dos portugueses mas apenas ter
sido viabilizado pelo voto Parlamentar.
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