Relações transatlânticas Europa - EUA

28 de Outubro, 2003

Intervenção de Sua Excelência o Primeiro-ministro na Conferência Internacional sobre Relações transatlânticas Europa – EUA"

 

Senhor Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian

Senhor Professor Marçal Grilo

Senhora Ministra

Senhoras e Senhores,

 

Antes de mais, gostaria de felicitar a Fundação Gulbenkian pela organização desta conferência internacional, cujo tema é particularmente oportuno. Trata-se de um assunto sobre o qual o Governo tem uma posição clara. Entendemos que a relação transatlântica é um elo vital para a segurança na Europa e a nível global, e entendemos também que ela necessita de ser revitalizada. Hoje retomarei de forma sucinta o posicionamento português à luz dos últimos desenvolvimentos internacionais, numa óptica assente no actual cenário de ameaças.

Desde logo, quero deixar bem claro que o Governo português considera que a relação transatlântica constitui um elemento chave do sistema de segurança no espaço euro-atlântico e, como tal, constitui também um interesse permanente europeu.

Por conseguinte, esse relacionamento atlântico, que eu rotularia de indispensável, responsável por mais de meio século de paz na Europa, deverá ser preservado e revitalizado à luz do novo ambiente estratégico internacional. É por isso necessário afastar as nuvens das considerações ideológicas de curto prazo.

Ao reforço da relação transatlântica deverá corresponder um reforço complementar e articulado do papel da Europa no mundo. A vocação atlântica de Portugal não implica qualquer diminuição da sua participação na construção europeia. Antes pelo contrário, uma Europa forte, coesa, consciente do seu potencial e, por maioria de razão, do seu papel à escala global, beneficiará e potenciará o desenvolvimento de uma saudável relação transatlântica.

Da mesma forma, não nos revemos em certas teorias que colocam a construção europeia como uma tentativa de estabelecer um contra-poder aos Estados Unidos. Desde logo por carecerem de qualquer possibilidade de sustentação política no plano geoestratégico. A Europa hoje em dia já é um parceiro dos Estados Unidos, uma contraparte não um contra-poder. É esse o sentido em que deverá caminhar a construção europeia.

De facto, a relação tem funcionado como um factor de estabilização da vida política internacional, tendo na Aliança Atlântica a sua tradução prática.

O mundo será melhor se a América e a Europa se entenderem e pior se divergirem.

Senhoras e Senhores,

Muito se tem escrito sobre a crise no relacionamento entre a Europa e os Estados Unidos. Muito se tem comentado sobre as diferentes visões da realidade e, em particular, acerca da nem sempre coincidente percepção do cenário de ameaças. Muito se tem ainda falado sobre a ausência de respostas articuladas entre Washington e as capitais europeias.

Mas, aparentemente, pouco se tem reflectido sobre as estratégias para ultrapassar essas dificuldades. Em abono da verdade, a um nível prático tais dificuldades nem sempre foram tão dramáticas como por vezes parece nos planos político e mediático. Aquilo que importa é, mais do que constatar factos, saber ultrapassá-los. Há que arregaçar as mangas nos dois lados do Atlântico. É preciso trabalhar com toda a energia e determinação para ser reforçar o relacionamento transatlântico.

Quando os norte americanos e os países europeus – incluindo Portugal - fundaram a NATO, não tiveram com certeza, logo à partida uma formula mágica para conter a União Soviética. Mas tiveram seguramente o bom senso de, com base numa percepção de ameaça comum, desenvolver os mecanismos de cooperação necessários à identificação de uma resposta a essa ameaça. E esses mecanismos foram eficazes e cumpriram plenamente a sua função.

Ora, sendo que hoje em dia os riscos e as ameaças – donde se destacam o terrorismo e a proliferação de armas com grande capacidade de destruição – continuam a ser comuns à Europa e aos Estados Unidos, importará então identificar, desenvolver e executar respostas também elas comuns.

No fundo, trata-se de um tipo idêntico de desafio que no século passado, só que agora com outros actores e um cenário internacional diferente.

Senhoras e senhores,

Não obstante a chamada crise transatlântica, e para desilusão dos "atlântico-cépticos", muito tem sido feito em conjunto pela Europa e pelos Estados Unidos.

A Europa teve ocasião de demonstrar que a sua memória não era curta ou selectiva em relação àquilo que os Estados Unidos fizeram em apoio do Velho Continente na 2ª Guerra Mundial e durante a Guerra-Fria. Foram batalhas em que a Europa e a América do Norte deram as mãos em defesa de valores fundamentais e contra ameaças a esses valores. Porque a comunidade transatlântica é, acima de tudo, uma comunidade de valores.

Um dia após os atentados de 11 de Setembro, a NATO reafirmou a solidariedade transatlântica e agiu em defesa de um aliado invocando, pela primeira e única vez na sua história, o artigo V do Tratado de Washington. Activava, assim, o sistema transatlântico de defesa colectiva.

Hoje a NATO está presente no Afeganistão, através da Força Internacional de Assistência e Estabilização – ISAF - garantindo a segurança em Cabul. Trata-se de uma missão histórica, não só por ser a primeira operação fora da tradicional área euro-atlântica, mas também porque constitui uma prova inequívoca da relevância da organização, quando muitos já lhe haviam reservado uma ala no museu da Guerra-Fria.

Noto ainda que o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou na semana passada uma resolução endossando o alargamento das competências da ISAF ao resto do território afegão.

No Iraque, a Aliança presta apoio à Espanha e à Polónia e tem-se vindo a falar da possibilidade de uma presença mais reforçada de forças aliadas no país. Esta questão torna-se mais relevante à luz da resolução recém aprovada pelo Conselho de Segurança. Recordo que a resolução 1511 não só apoia a força de estabilização, como também apela aos Estados membros para contribuírem para esse apoio, inclusive no plano militar. A presença de um contingente da GNR no Iraque é uma manifestação concreta do nosso apoio a tão importante operação e também uma reafirmação do nosso empenho na relação transatlântica.

Portugal está, aliás, também presente no teatro europeu. É talvez pouco conhecido, mas neste momento é um militar português que comanda a operação Concórdia na Macedónia e, neste mesmo país, a missão da OSCE é chefiada por um diplomata português.

Senhoras e Senhores,

O combate ao terrorismo constitui um tema central da Aliança. Nesse sentido, foram criados novos mecanismos de troca de informações de segurança, para além de se intensificarem os já existentes, e ao mesmo tempo foram lançadas várias operações militares de prevenção e combate ao terrorismo.

A esse propósito, devo dizer que a cooperação entre os diversos serviços de informação é, apesar das diferenças de opinião a nível político, bastante intensa e profícua.

A NATO Response Force inscreve-se também nesta lógica de transformação e de combate às novas ameaças. Esta força expedicionária, logo que operacional, irá permitir à Aliança projectar forças num curto espaço de tempo em teatros de operação longínquos e de elevada intensidade.

Concomitantemente, a NATO estabeleceu parcerias com a maior parte das antigas repúblicas soviéticas e com os países dos Balcãs, encetou um diálogo estratégico com a Ucrânia, bem como com os países da bacia mediterrânica, e formalizou um estreito e inovador mecanismo de consultas com a Rússia, o Conselho NATO-Rússia. Participei no lançamento deste Conselho que, no essencial, coloca a Federação Russa com um pé dentro da Aliança Atlântica. As implicações geo-estratégicas desta iniciativa são óbvias.

Por fim, recordo que a Aliança irá receber brevemente sete novos membros de pleno direito, expandindo ainda mais as suas fronteiras. Nada mau para uma Aliança que alguns com alguma frequência, sustentam que se encontraria numa fase terminal... Arriscar-me-ia mesmo a dizer que a NATO, à semelhança da União Europeia, enfrenta uma crise de crescimento e não um problema de sobrevivência.

Como facilmente se verificará, a NATO, confrontada nos anos 90 com duas opções out of area ou out of business, optou claramente pela primeira; e ainda bem que o fez. Soube rejuvenescer-se preservando e reforçando assim o seu papel nuclear no concerto transatlântico.

Na mesma linha se insere a Proliferation Security Initiative, lançada recentemente pelos Estados Unidos, Austrália, o Japão e mais oito estados europeus, incluindo Portugal. O seu objectivo é estabelecer mecanismos práticos de combate à proliferação de armas nucleares, bacteriológicas e químicas. Esta iniciativa é bem relevadora não só da existência de um claro consenso sobre a definição da ameaça que enfrentamos – europeus e americanos – mas também da capacidade de definir e executar uma resposta articulada.

Senhoras e Senhores,

Aceitar a centralidade da NATO significa também aceitar a ideia de que a Aliança Atlântica não poderá ser entendida como uma espécie de colete-de-forças para a Europa.

O meu Governo apoia inequivocamente a construção de uma Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). Nesse sentido, o reforço das capacidades militares europeias é condição sina qua non para o seu sucesso. Teremos de aceitar que será imperioso investir melhor na área da Defesa.

Apenas por essa via a Europa se poderá afirmar globalmente como uma potência respeitada e confiante. Poderá também assumir a sua parcela de responsabilidades globais e ser tomada seriamente por outras potências relevantes.

O Governo português tem, não obstante o conhecido quadro de contenção orçamental, procurado dotar as Forças Armadas de mais e melhores capacidades que permitam responder não só às missões intramuros, mas também projectar e sustentar forças em teatros de operações fora de portas. Esse é talvez o principal desígnio da reestruturação das nossas Forças Armadas.

Estando profunda e convictamente empenhados na construção da Política Externa de Segurança e Defesa, julgamos também que seria um grave erro que o processo de aprofundamento de uma cooperação europeia em matéria de defesa fosse concebido à revelia ou à custa da NATO. A PESD não deverá ser concebida a cavalo das divergências que existiram sobre Iraque. A Política Externa e de Segurança Europeia vale por si, não tendo por isso que se afirmar como contraponto a outras organizações.

No fundo, e simplificando, trata-se de salvaguardar duas questões centrais: que fique bem claro no Tratado Constitucional que a defesa colectiva da Europa continuará a caber à NATO e que a defesa europeia não é uma alternativa à Aliança Atlântica;

Não desejando adiantar muito, notaria que houve progresso neste domínio no Conselho Europeu de Bruxelas, na semana passada. Não há ainda um acordo, mas a esmagadora maioria dos parceiros europeus deseja o mesmo que nós em sede da PESD. E a esmagadora maioria foi muito explícita ao sustentar que o sistema de cooperações estruturadas previstas no projecto de Tratado Constitucional deverá obedecer, na maior extensão possível, às regras de inclusão e transparência previstas para as cooperações reforçadas.

 

Recordo que embora o alargamento não se tenha ainda formalmente consumado, na prática a União Europeia já trabalha a 25 e, nesse sentido, países que até pouco tempo se viram privados da sua soberania, como os estados Bálticos, não devem seguramente pretender esquemas de segurança fracos mas sim sistemas fortes e credíveis.

E lado dos Estados Unidos, o que é necessário? A resposta é simples: uma atitude de confiança no fortalecimento da defesa europeia. E a manutenção do seu empenhamento construtivo na defesa do espaço euro-atlântico. Noto que também do lado americano há alguns cépticos que precisam de ser conquistados por esta argumentação.

A relação transatlântica enfrenta duros e sérios desafios, incluindo o combate ao terrorismo e a resolução dos problemas que se avolumam no Grande Médio Oriente que se estende até Marrocos.

Combater o terrorismo requer uma adequada conjugação de medidas militares com políticas mais gerais. Nas últimas incluiria, entre outras, acções de ajuda ao desenvolvimento, de promoção dos valores da Democracia e Direitos Humanos, bem como o estabelecimento de um diálogo franco entre civilizações.

Relativamente ao Iraque, não posso deixar de sublinhar de novo o significado da recente aprovação da Resolução 1511. Repôs-se, assim, nas Nações Unidas o consenso sobre aquela que é inquestionavelmente a questão mais relevante da política internacional actual. Este desenvolvimento resolve de uma vez por todas o estéril debate da questão da legitimidade da presença da coligação no Iraque. Espero que contribua também para criar as condições necessárias para que os Estados Unidos e a União Europeia possam no Iraque trabalhar em conjunto.

Quanto ao fundo da questão, a nossa posição mantém-se clara :

  • Primeiro, defendemos como sempre fizemos, o reforço da inserção das Nações Unidas no processo de estabilização do Iraque. A democracia é o objectivo final. Não aceito as teorias daqueles que entendem que há países ou regiões congenitamente incapazes de sustentar regimes democráticos. A esse propósito, lembro-me bem do que durante os anos da ditadura no nosso país alguns diziam sobre a "ausência de propensão democrática" de Portugal e também da Espanha. Mais recentemente tivemos no Leste da Europa outro bom exemplo de bem sucedidas evoluções democráticas;
  • Segundo, não há uma alternativa válida a uma política que restitua ao povo iraquiano a possibilidade de definir livremente o seu futuro, bem como manter a integridade política e territorial do país;
  • Terceiro, ninguém na Europa teria a ganhar com uma operação mal sucedida no Iraque. Pelo contrário, um bom resultado deste exercício poderá constituir o "exemplo" de democratização que a região do Grande Médio Oriente

Senhoras e Senhores,

Pela história que os liga e pelos valores que partilham, arriscar-me-ia a dizer que a Europa, o Canadá e os Estados Unidos estão condenados a entenderem-se. E é precisamente com base nessa percepção de partilha de valores e de defesa conjunta dos mesmos que terá de ser empreendida a reconstrução da relação transatlântica. Teremos de saber adaptar-nos às circunstâncias e trabalhar em conjunto.

Esse é o "segredo" da relação transatlântica e, por isso mesmo, esta é dificilmente reproduzível noutras áreas do globo, mesmo quando interesses imediatos aparentam o contrário. Se todos, os europeus e norte-americanos, compreendermos bem que aquilo que nos une é muito mais intenso do que aquilo que nos pode separar, a relação transatlântica continuará a ser o mais importante pilar de estabilidade mundial no século XXI. Pela parte que nos toca, continuaremos a fazer o nosso melhor para garantir que esse objectivo seja realizado.

 

José Manuel Durão Barroso

22.Out.2003