FORUM 2001: A Cooperação Cultural na Europa, Vasco Graça Moura defende envolvimento dos cidadãos

Promovido pela Comissão Europeia, começou hoje, em Bruxelas, o FORUM 2001 sobre "A Cooperação Cultural na Europa".

Neste Forum, que contou com a presença do Presidente do Conselho de Ministros da Cultura, o Ministro belga Rudy Demotte, a Comissária Vivianne Reding, o Deputado Vasco Graça Moura, Vice-Presidente da Comissão da Cultura do Parlamento Europeu alertou para o risco de "o programa-quadro Cultura 2000 passar ser visto como interessando fundamental e directamente aos profissionais do sector e apenas indirectamente aos cidadãos. É o risco de Cultura-2000 passar a funcionar à imagem de Media Plus, relegando para segundo lugar a contemplação desses mesmos cidadãos.

E, se assim for, acrescentou, Vasco Graça Moura, os objectivos do programa-quadro acabarão por ser subordinados aos objectivos das próprias redes envolvidas, subvertendo-se o próprio conceito de cooperação cultural entre os Estados".

Intervenção do Vice-Presidente da Comissão Cultura, Dep. Vasco Graça Moura

Quero aproveitar o início dos nossos trabalhos para chamar a vossa atenção para um ponto sobre o qual devemos reflectir: num acontecimento de tão grande importância, que reúne 200 ou 300 pessoas vindas de todos os cantos da Europa para discutir coisas essenciais, não vemos jornalistas, nem micros das rádios, nem câmaras de televisão. O que nos mostra como são relativas as questões de visibilidade... visibilidade de que tanto se fala a propósito do programa Cultura 2000.

1. O documento preparado e distribuído pela Comissão, com vista a este fórum, sobre a cooperação cultural na Europa, fornece uma quantidade impressionante de dados sobre o que tem sido a acção da Comissão na área da Cultura.

Nomeadamente, permite seguir com clareza a evolução da acção comunitária nesta matéria e surpreender muitas das questões que quanto a ela se levantam, isto para além de identificar as múltiplas áreas sobre que essa acção tem incidido.

E todavia, não obstante a eloquência dos números e a importância, maior ou menor, das intervenções, o balanço ali feito não pode considerar-se positivo.

Podemos ler nesse documento, com efeito, que "os projectos seleccionados se referem a um vasto leque de temas", mas que "dada essa variedade muito grande e a fraca visibilidade das acções seria abusivo dizer-se que os objectivos de acesso e de participação do maior número de cidadãos na cultura e o reforço do sentimento de pertença dos cidadãos a uma mesma comunidade tenham sido encontrados".

Tenho alguma dificuldade em compreender esta formulação e em especial a relação de causa-efeito que supõe.

Independentemente da maior ou menor visibilidade, a grande variedade dos temas deveria contribuir para facilitar o acesso de cada vez mais cidadãos à cultura e não para o seu contrário.

E, se esses temas contêm uma dimensão intrinsecamente europeia, não se percebe por que razão deixam de reforçar o sentimento de pertença a uma comunidade e ao seu espaço cultural.

Teremos portanto de procurar as causas daquela constatação negativa, não na variedade em si, mas na natureza e características dos temas, de muitos dos temas seleccionados, e na maneira como foram seleccionados.

2. Por outro lado, é reconhecido que, se a acção cultural respeitou o quadro institucional traçado pelo tratado, também acarretou o desenvolvimento de uma acção que foi mais vezes paralela do que complementar quanto aos projectos realizados a nível nacional ou regional.

É muito provável que esta situação derive, não apenas da metodologia seguida para a selecção dos projectos mas também, em boa parte, do estímulo dado à criação de redes culturais na última década.

Sem negar que essas redes sejam um importante elemento da logística de uma acção cultural a nível europeu, parece importante analisar em que medida se resvalou para a existência de uma série de "dependências em rede", cuja razão de existência, de funcionamento e de... subsistência tenha passado a ser a acção cultural prosseguida a nível europeu.

Entre outros, o facto de a acção cultural ter passado a ser mais paralela do que complementar em relação à exercida a nível nacional ou regional parece indiciá-lo, "como se" as redes tivessem conseguido impor os seus objectivos, em vez de servirem os objectivos dos programas comunitários.

Também deve registar-se que a própria comissão reconhece a existência de três categorias de redes, sendo uma delas a das "redes gestoras de projectos".

O risco que se corre é o de o programa-quadro Cultura 2000 passar ser visto como interessando fundamental e directamente aos profissionais do sector e apenas indirectamente aos cidadãos.

É o risco de Cultura-2000 passar a funcionar à imagem de Media Plus, relegando para segundo lugar a contemplação desses mesmos cidadãos.

E, se assim for, os objectivos do programa-quadro acabarão por ser subordinados aos objectivos das próprias redes envolvidas, subvertendo-se o próprio conceito de cooperação cultural entre os Estados.

Estas observações não pretendem, como é evidente, negar a importância da existência e funcionamento das redes, mas sim e apenas alertar para a necessidade de inflexão de uma tendência que parece desenhar-se e que, a acentuar-se, comportaria mais um factor de distorção do sistema, levaria inevitavelmente ao privilégio "de facto" reconhecido aos grandes operadores culturais e à minimização dos médios e dos pequenos.

3. Em terceiro lugar, parece dever reconhecer-se que os objectivos traçados pelo programa-quadro Cultura 2000 são muito mais ambiciosos do que os meios humanos e financeiros disponíveis para a gestão do programa.

As coisas ainda se complicam mais se pensarmos que tais objectivos não se confinam à União na sua composição actual, pois consideram também os países candidatos ao alargamento e admitem mesmo a consideração de interesses de cooperação transcontinental.

A tensão estabelece-se portanto entre uma pluralidade de intervenções que visam proporcionar a cada cidadão o acesso aos bens e valores da cultura e uma tendência dispersiva e atomizante da gestão que implicaria assim uma desvairada floresta de recursos irrealizáveis na prática.

Por isso não deve invocar-se a grande variedade de temas como causa dos resultados negativos, mas antes um tipo de actuação que tem tido dificuldades, aliás compreensíveis, não apenas em gerir toda a complexidade do sistema, mas também em compreender objectivos e em estabelecer prioridades.

E por isso terá de agir-se com razoabilidade.

Mas entendo que não basta uma acção pautada pela razoabilidade "tout court", isto é, uma acção que procure gerir tão correcta e realisticamente quanto possível um estado de coisas por natureza heterogéneo e complicado e um orçamento absolutamente ridículo e indigno do nome de orçamento para a cultura.

Torna-se necessário buscar uma componente enquadradora para a situação.

É aí que entra a política.

A política implica distribuir um conjunto de recursos que, por definição, são sempre escassos, para fazer face a necessidades que os transcendem sempre.

Ora a grande questão, em matéria de política cultural, ou, se se preferir a linguagem dos tratados, em matéria de cooperação no espaço cultural europeu, é esta:

Deve a Comissão ser uma simples plataforma de acolhimento de projectos e uma estação financiadora deles, a partir de uma sua classificação e graduação e de todo um conjunto de procedimentos burocráticos?

Ou deve antes a Comissão prosseguir uma concepção própria para a Cultura e para a acção correspondente no espaço cultural europeu, definindo as prioridades a partir dela e graduando a distribuição de recursos em conformidade?

Isto é, deve ou não deve a Comissão saber quais são os objectivos a prosseguir prioritariamente no espaço cultural europeu e pautar a sua acção em função disso e lançar os seus "appels d'offre" em conformidade?

Sempre em minha opinião, se é verdade que a Comissão não pode ignorar os objectivos muito numerosos do programa-quadro, também é verdade que não está impedida de fazer as opções correspondentes ao estabelecimento de prioridades marcantes e de dar-lhes uma tradução concreta.

Parece-me evidente que, na actual fase do processo europeu, há alguns aspectos que sobrelevam aos outros. Por exemplo:

- o objectivo da preservação e valorização da dimensão europeia da cultura, na sua identidade e na sua diversidade,

- o objectivo de preservação, valorização e divulgação da herança cultural europeia, ou, se se preferir, do património cultural europeu dando a esta expressão um sentido muito lato no espaço e no tempo, e

- o aprofundamento da consciência de que pertencemos a um espaço cultural comum,

com todas as implicações que acarretam de aprofundamento do conhecimento recíproco entre os cidadãos da União.

Por outro lado, há factores que podem ajudar a delimitar a acção da Comissão, no plano de Cultura-2000, desde o funcionamento do princípio da subsidiariedade até à natureza e características de muitos projectos que se afigurem de importância secundária em relação àqueles objectivos.

Entre a herança comum europeia, cuja preservação, valorização e divulgação é um imperativo óbvio, e a contemporaneidade, mesmo europeia, mesmo ligada, como não pode deixar de estar, a essa mesma herança, afigura-se que as opções prioritárias deveriam contemplar aquela, porque corre mais riscos, porque é menos conhecida, porque é menos partilhada pelo conjunto dos cidadãos da União, e porque é imperativo ultrapassar este estado de coisas.

Entre a consciência de pertencer a uma mesma comunidade a partir das matrizes que a configuram e a consciência, aliás concomitante, de pertencer a uma contemporaneidade em que a globalização se encarrega de padronizar e indiferenciar muita da criação cultural, afigura-se igualmente que as prioridades devem contemplar aquela, por se tratar de um traço identificador que deve ser reforçado, que é portador de valores próprios e que é imperativo se radique e generalize.

Isto não quer dizer rejeitar a contemporaneidade.

Quer apenas dizer que há interesses e actividades culturais, de resto também da maior importância, ligados à contemporaneidade, que ainda não fazem parte da herança comum europeia, e a cuja prossecução, por isso mesmo, deveria corresponder uma graduação mais distante no plano de Cultura-2000.

Note-se que tudo isto não tem a ver com uma hierarquização de dignidades no plano dos valores culturais e da criação cultural, mas com a necessidade de a Comissão, como instituição europeia, fazer opções de fundo no próprio interesse da Europa.

Dentro de poucos meses, teremos a avaliação de Cultura-2000 a meio do percurso e, dentro de poucos anos, teremos de preocupar-nos com o "day after", com o programa ou programas que deverão suceder a Cultura-2000.

Daí as reflexões que acabo de apresentar.

Se queremos partilhar eficazmente alguma coisa que temos em comum porque nos veio como herança dinamizadora, é melhor que comecemos a preocupar-nos com ela desde já e que isso seja uma verdadeira prioridade.